sábado, 25 de junho de 2011

Responsabilidade pessoal do agente público por danos ao contribuinte (Parte 1)

Tem sido freqüente a referência de empresários a atos de arbitrariedade do fisco, praticados em circunstâncias várias e por várias razões, muitas vezes inconfessáveis. Quem vivencia a relação tributária sabe muito bem que ela, embora teoricamente seja uma relação jurídica, na prática é hoje muito mais uma relação de poder, na medida em que os direitos fundamentais do contribuinte são publica e flagrantemente desrespeitados pelas autoridades fazendárias. Basta citarmos as ameaças públicas de cancelamento do CPF de contribuintes omissos (O contribuinte que deixa de cumprir um dever legal submete-se à multa correspondente. A inscrição no cadastro respectivo é a identidade do contribuinte, colocada hoje como condição para o exercício de inúmeros direitos do cidadão na sociedade. O inscrever-se, antes de ser um direito, é um dever. Quem o cumpriu, inscrevendo-se, não pode ser colocado na clandestinidade. Salvo quando comprovada a falsidade da inscrição, em nenhuma outra hipótese pode ser esta cancelada pela autoridade. O cancelamento de inscrições dos que não apresentaram a denominada declaração de isento é um ato covarde, repleto de arbítrio, praticado contra pessoas indefesas, a pretexto de colher na imensidão de pobres inocentes alguns poucos espertos que estariam burlando a Fazenda Pública), e as humilhações sofridas por quantos buscam as repartições fazendárias para solucionar problemas surgidos na relação tributária.

O dever de pagar tributo, na atualidade, certamente integra o feixe de relações jurídicas que se pode denominar o estatuto do cidadão. Embora nem sempre tenha sido assim, pagar tributo é atualmente um dever fundamental do cidadão. Há mesmo quem diga que o tributo é o preço da cidadania. Ocorre que o desrespeito, pelas autoridades fazendárias, aos direitos do contribuinte, deteriora o sentimento da cidadania e a própria crença no Direito como instrumento de regulação das relações sociais. Tendo a toda hora os seus direitos fundamentais desrespeitados pelo fisco, sente-se o contribuinte moralmente desobrigado de cumprir a lei, que somente contra ele se mostra eficaz. A violência ao Direito, praticada constantemente pela parte poderosa na relação tributária, faz crescer no contribuinte a idéia de que as leis são apenas um instrumento da força, desprovido de todo e qualquer fundamento moral, porque os deveres morais são sempre bilaterais e assim, nas relações fundadas na moral, quando uma parte não cumpre os seus deveres nada pode exigir da outra (Dizem que o único dever moral sem contraprestação é o dever dos pais para com os filhos).

As autoridades da Administração Tributária certamente consideram necessárias certas práticas autoritárias, e mesmo arbitrárias, em face da sonegação praticada pelos contribuintes. Tais práticas seriam justificáveis como instrumento de defesa do Erário. Ocorre que o Estado tem meios para coibi-las sem violar as leis, não se justificando, portanto, em nenhuma hipótese, que alimente o círculo vícioso da ilegalidade.

Não se pode negar a existência de sonegação, nem muito menos a necessidade de defender-se o Erário contra as práticas evasivas do contribuinte. Mas não é razoável admitir-se que a defesa do Erário se faça mediante práticas arbitrárias, pois estas produzem evidente e progressivo desgaste da relação fisco contribuinte. Desgaste que não pode ser superado pela intimidação, hoje consubstanciada na definição do ilícito tributário como crime, com a conseqüente e permanente ameaça de pena prisional.

A defesa do Erário há de dar-se, em primeiro lugar, mediante a edição de leis justas e também noutros aspectos obedientes à Constituição. E em segundo lugar, mediante um trabalho de fiscalização mais efetivo e competente, capaz de detectar as práticas evasivas e punir os infratores. Não apenas os pequenos, mas também os grandes, pois a punição destes funciona como exemplo capaz de exercer incomensurável influência positiva.

A lei justa e em todos os aspectos obediente à Constituição permite que a relação tributária se desenvolva em clima de respeito mútuo das partes nela envolvidas. E para ser justa a lei deve colocar as partes, fisco e contribuinte, em posição de equilíbrio. Aliás, essa posição de igualdade chega a ser mesmo da própria essência do Direito, posto que, como ensina Arnaldo Vasconcelos:

"tendo sido o Direito chamado a realizar a compartição das liberdades, a fim de possibilitar-lhe a convivência, nunca se poderia admitir que a parcela atribuída a um fosse maior ou melhor do que a parte destinada ao outro. A intervenção do Direito só se deu para que a compartição obedecesse ao princípio da igualdade dos homens. Não fosse assim, seria inteiramente prescindível" (Arnaldo Vasconcelos. Direito, Humanismo e Democracia. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 23).

É lamentável que essa posição de igualdade, mesmo teoricamente, ainda esteja longe de ser alcançada na relação tributária, que ainda é muito mais uma relação de poder. Basta ver-se que a lei tributária comina penalidades para a violação de seus dispositivos, pelo contribuinte, mas em geral não comina penalidades para as violações dos direitos do contribuinte, praticadas pelos agentes e pelas autoridades da Administração Tributária. Estabelece penas pecuniárias para a não prestação, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias, principal e acessória, mas no âmbito administrativo ou cível não estabelece nenhuma sanção para o agente público que exige do contribuinte, indevidamente, a prestação de qualquer de suas obrigações.

É exatamente por isto que se impõe ao jurista a busca de soluções capazes de viabilizar o aperfeiçoamento da relação tributária, tornando-a uma relação efetivamente jurídica. Enquanto os detentores do poder político não promovem a edição de leis que regulem mais adequadamente a atuação das autoridades da administração tributária, fazendo-as responsáveis pessoalmente pelos ilícitos que eventualmente cometam, cabe ao jurista buscar no ordenamento um caminho para o equilíbrio das partes e o conseqüente aperfeiçoamento da relação de tributação, com vantagens para o cidadão e para a Fazenda Pública.

Hugo de Brito Machado - Texto integral Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3014>

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