Alexa Salomão - EXAME.COM
São Paulo - O
economista Raul Velloso se diz cético em relação à reforma tributária.
Estudioso das finanças públicas, ele afirma que a pressão dos gastos, tanto da
União quanto de estados e municípios, é tão intensa que os fiscos são obrigados
a concentrar esforços para arrecadar quantias sempre maiores.
“Não existe espaço para uma discussão sensata
sobre a reforma porque ninguém quer perder dinheiro”, diz Velloso. “Todo mundo
apenas finge que quer a reforma.” O fato é que o caráter hermético e caótico do
sistema tributário brasileiro hoje opera em favor do aumento da arrecadação a
qualquer custo.
A profusão de
tributos é uma demonstração disso. São seis sobre bens e serviços (IPI, Cofins,
PIS, Cide, ICMS e ISS) e dois sobre o lucro (IRPJ e CSLL). A folha de
pagamentos tem tantos penduricalhos fiscais que cada trabalhador custa para a
empresa mais do que o dobro do que ganha. O sistema também alimenta guerras
tributárias entre estados, entre municípios e entre os estados e os
municípios.
Nas próximas páginas
há cinco exemplos de distorções que ilustram o vale-tudo em que se transformou
essa busca por abastecer o Erário. Em todos, o que se vê são estratégias
intrincadas para garantir a cobrança de impostos.
Não raramente, elas
contrariam a racionalidade, atropelam a lei, distorcem o funcionamento da
economia e até intervêm nas relações diplomáticas do Brasil com outros países.
As soluções para cada caso, ao contrário, são simples e objetivas. Mas dependem
de qualidades que andam escassas no país: bom senso e vontade política.
1 A regra muda
hoje — mas vale para o passado
Revisões ou criações de normas
fiscais podem gerar dívidas retroativas para quem sempre pagou tudo
em dia
Imagine se a Fifa, a
federação que regulamenta o futebol no mundo, mudasse as regras de
arbitragem hoje, mas avisasse que elas valeriam não só daqui para a frente mas
para os jogos realizados nos últimos anos. Refeitas as contas, os vencedores do
Brasileirão, da Libertadores da América e até da Copa do Mundo teriam de
repassar as taças aos perdedores.
A situação é
inconcebível, mas algo semelhante ocorre no sistema tributário brasileiro, que
é um ambiente fértil para a criação de novas regras, as reinterpretação de
regras antigas e a interferência de decisões judiciais que reveem até a revisão
da regra.
Enfim, há espaço de
sobra para que o Fisco cobre hoje impostos retroativos. Os prazos de cobrança
para trás são igualmente surreais. Variam de cinco a seis anos, dependendo da
interpretação do fiscal.
Como não há lei que
proteja o contribuinte de súbitas mudanças de rota, é comum as divergências
terminarem na Justiça. “Questionar a retroatividade está entre as brigas
judiciais mais comuns na área tributária”, diz Maucir Fregonesi Junior, sócio
do Siqueira Castro Advogados. “Só o nosso escritório tem mais de 100 causas
desse tipo no momento.”
Recentemente, a
viagem pelo túnel do tempo fiscal tomou um rumo inesperado. Em 2011, o Supremo
Tribunal Federal julgou, de uma só vez, 14 ações contra a concessão de
incentivos fiscais — e considerou ilegais todos os benefícios listados nos
processos. A proposta da corte suprema é emitir uma súmula que irá tornar
irregular qualquer benesse tributária.
A decisão poderá
abrir margem para que os estados cobrem impostos atrasados das empresas que
aceitaram os incentivos fiscais oferecidos pelos próprios governos estaduais.
“Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, os governos não podem abrir mão de
impostos”, diz Adriana de Figueiredo, sócia do escritório Trench, Rossi e Watanabe.
“Por isso, o risco de cobrança é real.”
A montadora GM no Rio
Grande do Sul, a calçadista Grendene no Ceará e a farmacêutica Teuto/Pfizer em
Goiás são apenas algumas das empresas que podem receber faturas milionárias.
Pelas estimativas do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, o débito
total das empresas beneficiadas por incentivos passaria de 250 bilhões de
reais.
Em outros países, o
cenário kafkiano dificilmente ocorre porque o contribuinte é protegido pela
lei contra as incoerências do coletor de impostos.
O código tributário
da França prevê que, se o contribuinte seguir as regras do poder público, não
pode ser punido com a cobrança de impostos atrasados caso essas regras sejam
revistas depois. O correto seria que o Fisco brasileiro aplicasse a lei do
futebol: não se muda placar de jogo já encerrado. Simples assim.
2 O Fisco
dita o preço do produto
É isso o que ocorre na substituição
tributária, hoje a forma mais comum — e polêmica — de cobrança do ICMS
Toda vez que os
preços dos medicamentos são reajustados, a trabalheira se repete. Os 280
fabricantes acionam as calculadoras para apurar quanto deve ser pago de imposto
sobre circulação de mercadorias e serviços para cada um dos 20 000 tipos de
remédio vendidos no país.
Detalhe: os
fabricantes ainda calculam os impostos dos distribuidores e das farmácias,
consolidam o resultado e pagam o total assim que cada produto deixa a
empresa — ou seja, o tributo é pago antes de ser vendido ao consumidor.
O ritual é o mesmo na
maioria dos setores, como os de cosméticos, eletroeletrônicos e alimentos. Para
cobrar o imposto antes da venda ao consumidor, é preciso projetar o preço
final.
Isso é feito por meio
de pesquisas que são coordenadas pelos governos estaduais — que, em última
instância, são os beneficiários da coleta dos impostos. O Brasil é o único país
que cobra impostos sobre tantos produtos antes que sejam vendidos.
O sistema, chamado de
substituição tributária, foi adotado nos anos 80 para combater a sonegação em
alguns setores, como o de cigarros, mas se alastrou.
“A substituição
combateu a sonegação porque é mais fácil fiscalizar uns poucos fabricantes do
que milhões de comerciantes”, diz José Clóvis Cabrera, coordenador de
administração tributária da Secretaria da Fazenda de São Paulo, o estado mais
atuante nessa cobrança.
Ainda assim, a
substituição é uma distorção. “A Bélgica tentou adotar um sistema parecido para
a venda de carros usados”, diz o advogado Iure Vieira, que tem especialização
em finanças públicas pela Universidade Panthéon-Assas, de Paris. “A Justiça
proibiu porque entendeu que projetar preços era uma forma de tabelamento que
fere a livre concorrência.”
Os empresários
brasileiros concordam. “A substituição ataca a sonegação e a informalidade”,
diz Luiza Helena Trajano, presidente da varejista Magazine Luiza. “Porém, é
burocrática e tabela os preços.” Geladeiras, fogões, televisores e até carros
chegam ao ponto de venda com um preço determinado.
Na avaliação dos
especialistas, investimentos em novas tecnologias, como a nota fiscal
eletrônica, vão oferecer mecanismos mais eficientes para combater a sonegação.
Os estados poderão cobrar o imposto como se faz nas economias mais
desenvolvidas — só depois que o produto deixar a loja.
3 O Leão sai
rugindo pelo mundo afora
A Receita Federal cobra imposto de
renda de empresas brasileiras no exterior antes de o resultado ter sido
consolidado
As primeiras
multinacionais pagavam impostos sobre o lucro obtido no exterior quando o
resultado era consolidado no país de origem. Nos anos 60, quando a
internacionalização dos negócios acelerou, os Estados Unidos criaram uma lei
para desmotivar quem quisesse deixar o dinheiro fora e sonegar. Mas a lei foi
pensada para não interferir nos negócios.
Assim, o Fisco
americano assumiu critérios para agir em outros países: foco nas empresas que
estão em paraísos fiscais ou que mostrem conduta suspeita. É compreensível que
uma filial recém-inaugurada na Ásia não remeta um centavo para a matriz durante
alguns anos, por estar à espera do retorno do investimento. Mas uma operação
que nunca sai do vermelho merece investigação.
Do mesmo modo, não é
suspeita uma rede hoteleira que abre unidade nas Bahamas, paraíso fiscal no
Caribe. Já o escritório de uma montadora, que não produz nada lá, tem as contas
remexidas pelos fiscais. A lei americana inspirou as demais do gênero no mundo
— menos a do Brasil.
O pressuposto do
Fisco brasileiro é o inverso: aqui todos são culpados até provarem o contrário.
O que mais incomoda as multinacionais brasileiras é a cobrança do imposto de
renda e da contribuição sobre o lucro líquido de coligadas e controladas no
exterior. A cobrança é frequentemente feita antes de saber se há ou não lucro
no conjunto da operação.
O resultado parcial
de uma empresa pode ser destinado a pagar dívida ou a um novo investimento — e,
nesse caso, não faz sentido cobrar imposto, já que não houve lucro. “A saída
das empresas tem sido questionar a cobrança na Justiça”, diz o advogado Marco
Behrndt, sócio do escritório Machado, Meyer. A maior briga é a da Vale. Pelos
cálculos da Receita, ela deve 30 bilhões de reais por lucros no exterior.
A mineradora contesta
e aguarda uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Para pôr fim às divergências
basta uma lei ordinária, baseada na regra americana. O Brasil só cobraria fora
de quem atua em paraíso fiscal ou tem conduta suspeita. As demais pagariam
imposto aqui dentro.
4 Detalhe
demais e clareza de menos
Há mais de 100 regras para o Pis e
para a Cofins, mas nenhuma define algo básico para os negócios: o que é
insumo
A Doux Frangosul,
avícola do Rio Grande do Sul, dedicou sete anos a uma tarefa no mínimo surreal:
convencer técnicos da Receita Federal e funcionários do Ministério da Fazenda
de que os uniformes dos funcionários são imprescindíveis à produção.
A vestimenta é
exigida pela Agência de Vigilância Sanitária porque protege contra a baixa
temperatura de câmaras frigoríficas e evita a contaminação da carne.
A estranha discussão
conceitual fazia uma grande diferença para os dois lados. Pela lei que rege a
tributação do PIS e da Cofins, duas contribuições federais sobre bens e
serviços, as empresas podem pedir ressarcimento dos gastos com materiais que
sejam fundamentais à produção, os chamados insumos — no caso da Doux Frangosul,
os uniformes.
As regras dos dois tributos
estão entre as mais complexas da lei tributária. Há mais de uma centena de
exigências e exceções às exigências, além de especificidades para cada segmento
de cada setor. No agronegócio, por exemplo, há uma regra para o leite e outra
para a carne.
Em 2002 e 2003, a
cobrança foi revista para facilitar a vida do contribuinte, mas a complicou
ainda mais. Por uma dessas falhas inexplicáveis, a definição de insumo,
justamente o conceito que baliza o ressarcimento das contribuições, não ficou
clara.
De lá para cá,
Receita e contribuintes tentam construir a definição em brigas judiciais. “PIS
e Cofins incidem sobre a mesma coisa, a receita. Mas têm duas legislações
difíceis de entender e de aplicar”, diz a advogada Glaucia Lauletta Frascino,
sócia do escritório Mattos Filho. “É o caos total.”
O governo anunciou
que irá unir os dois tributos em apenas um. Para os especialistas, será a
oportunidade de aprimorar a legislação. Uma pesquisa do Núcleo de Estudos
Fiscais da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas concluiu que uma lei
tributária deve seguir seis princípios por ordem hierárquica.
O primeiro deles é a
simplicidade. Ou seja, definir com clareza e objetividade o que se quer. Se a
nova lei for assim, já será um avanço.
5 Para
arrecadar mais, vale até ignorar tratado
A Receita Federal reinterpretou
acordos do Brasil com 30 países para cobrar estrangeiros
A globalização
obrigou os países a negociar a cobrança de impostos de suas multinacionais para
evitar a bitributação em escala planetária. A Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, que reúne as nações mais desenvolvidas, tomou a
frente na tarefa.
Criou modelos de
acordos que conciliam as relações entre os fiscos de cada país e as empresas
globais. O Brasil fez mais de 30 tratados, mas aqui não houve o alívio.
A Receita Federal
simplesmente ignora os acordos: cobra imposto de renda sobre o pagamento que
empresas no Brasil remetem a prestadores de serviço com sede no exterior e que
nem sequer têm uma sala alugada no Brasil.
Pelos tratados,
nesses casos, o imposto deve ser cobrado no país de origem do prestador de
serviço. “É incrível, mas a Receita tem o hábito de fazer leituras particulares
até das normas mais claras”, afirma o tributarista Aldo de Paula Junior, do
escritório Azevedo Sette Advogados.
A fabricante de
celulose Veracel, sociedade entre a Fibria e o grupo sueco-finlandês Stora
Enso, vive à mercê desse disparate. A Veracel tem contratos permanentes de
prestação de serviços com empresas no Canadá e na Finlândia, países com os quais
o Brasil estabeleceu acordos tributários.
No entanto, a Receita
Federal insiste que o imposto é do Brasil. Desde 2004, a Veracel questiona a
cobrança na Justiça e não paga o imposto, à espera da decisão final. O débito
ultrapassa 3 milhões de dólares. Um transtorno como esse não ocorreria se a Receita
fizesse o óbvio: cumprisse os acordos internacionais assinados pelo Brasil.