sexta-feira, 19 de agosto de 2011

“EU SONEGO!


Eu soneguei pela primeira vez aos 17 anos quando vendi, sem Nota Fiscal, minha bicicleta usada. Meus pais souberam, levei um sermão, tive sessões com psicólogos, quase fui expulso do colégio, mas aprendi como lidar melhor com a sonegação: o importante é fazer sem ninguém ficar sabendo.
Hoje sou um empresário bem sucedido, mas, de vez em quando dou minhas sonegadazinhas, não gosto de falar muito sobre o assunto, mas não me envergonho, tanto que sonego na frente dos meus filhos, embora eles não sejam adeptos (talvez porque ainda não tiveram que fazer nenhuma declaração de Imposto de Renda).
Ultimamente, tenho percebido que a sociedade vem amadurecendo para o fato de que não tem nada demais em sonegar de vez em quando, muito embora um ex-presidente americano que declarou: “Soneguei, mas não me locupletei” quase tenha sofrido um processo de impeachment por isso (acho que estou me confundindo, ele quase sofreu um processo de impeachment por uso indevido de charuto, isso sim um vício muito charmoso, danoso e maléfico).
Tenho diversos amigos que também sonegam, são todos pessoas normais, não sofrem de dependência, mas de vez em quando se reúnem para uma sonegação em grupo, reuniões estas não muito freqüentes e que só ocorrem quando dá saudade daquela sensação que só quem sonegou sabe o que é.
Sei de histórias sobre pessoas que, presas por sonegação, tiveram contato com drogas mais fortes, saíram assaltantes, estelionatários, mas quero deixar claro que a maioria das pessoas que sonega não é assim, são, como eu, pessoas normais, que levam uma vida normal, com família, filhos, amigos, apenas de vez em quando, já que ninguém é perfeito, dão uma sonegadazinha.”

A revista Época, na edição n.º 183, de 18.11.2001,  publicou reportagem sobre o tema “Maconha”, trazendo depoimento de 14 pessoas - famosas e anônimas -, que se dispuseram a sair das sombras que habitualmente envolvem o tema, pessoas que, assumindo fumar, não se esconderam atrás de iniciais, aceitando inclusive posar para fotos.
A repercussão da reportagem, principalmente após o fato de a TV Cultura ter, como efetivamente poderia, cancelado o contrato com a apresentadora Sonia Francine – a Soninha – e a discussão e controvérsia criada ao redor do tema, me fizeram refletir sobre o modo parcial e indutivo como alguns fatos são habitualmente tratados, inclusive na imprensa.
Gostaria de esclarecer que foi utilizado o contexto proporcionado pela reportagem da Revista Época tão-somente no intuito de se criar um paralelo com o tema a ser abordado no presente artigo, por conseguinte, não se pretende efetuar qualquer análise quanto à reportagem em si, ou à discussão que se sucedeu a ela.
Acredito que todos já tenham percebido que o texto transcrito no início é uma adaptação (talvez, apesar da intenção, não de indubitável bom gosto) de trechos dos depoimentos trazidos pela citada revista, no intuito de chamar a atenção para um enfoque um pouco diverso do que habitualmente se tem sobre um tema cujo nome sequer possui boa sonoridade: Sonegação Fiscal.
Para que haja uma sociedade, é necessário que haja um governo, mesmo que seja em sua forma mais rudimentar, e, nas diversas sociedades, mesmo as mais primitivas, verifica-se que os chefes (governo) eram mantidos, total ou parcialmente, com alimentos, peles para roupas, dentre outros, fornecidos pelos seus membros. Por conseguinte, a tributação tem origem quase que concomitante com o momento em que o homem começou e conviver em sociedade, apesar de ser a tributação de então totalmente diversa da que se conhece hoje.
 Do mesmo modo como os animais disputam o melhor território, a melhor comida, o ser humano também tem, em sua natureza, um certo instinto em buscar vantagens para si, instinto que se manifesta também sob a forma de rejeição a se desfazer do que mantém em seu poder. Por conseguinte, é plausível imaginar-se que, ao mesmo tempo em que se criavam os primórdios tributários, havia alguém pensando em como se esquivar deles. Portanto, verossímil a afirmação de que, assim como a tributação tem origens remotas, a sonegação também o tem.
Todavia, como tudo o que é feito pelo homem, a tributação também possui suas imperfeições, e é por decorrência destas que existe sonegação em patamares muitas vezes não aceitáveis. Mas, ao contrário que muitas vezes se apregoa, as grandes imperfeições tributárias ensejadoras de sonegação não estão nas chamadas “brechas da legislação”, mas sim na forma como a sistemática tributária se encontra constituída, ou, melhor dizendo, na forma como a carga tributária se encontra injustamente distribuída, visto que muitas vezes o contribuinte é levado, conjuntural ou estruturalmente, a ficar à margem do sistema formal, por uma simples questão de sobrevivência.
Mas, pelo modo como habitualmente é tratado o termo “sonegador”, quem recebe esta alcunha se aproxima, no imaginário popular, de um louco devorador de criancinhas. Do mesmo modo como, no raciocínio básico popular, quem é usuário de maconha, provavelmente virá a sê-lo também em relação a todas as demais substâncias tóxicas de consumo proibido, o sonegador também é visto de forma similar, posto que, também no raciocínio básico popular, quem sonega seria capaz de outras infrações maiores, tais como corrupção ativa, desvio de verbas públicos, etc.
Se o raciocínio fosse em sentido contrário, o de quem pratica infrações de maior gravidade provavelmente também cometeria infrações menores, apresentaria-se este (raciocínio), apesar de falho, ao menos com maior coerência.
Mas o que aparentemente todos se esquecem é que, enquanto criticamos a sonegação e os que sonegam, ao mesmo tempo colaboramos, no dia a dia, para que a sonegação continue existindo, isso quando não praticamos pequenos fatos que efetivamente implicam em sonegação, como, exemplificando, quando compramos um produto sem a correspondente nota fiscal, ou mesmo dispensamos o recibo no médico ou dentista, no intuito de obter melhor preço.
 Mas, ao agirmos desta forma, não nos sentimos sonegadores. Na verdade raramente paramos para pensar sobre esses pequenos delitos tributários, talvez não consideremos efetivamente esses pequenos delitos como delitos, ou talvez tenhamos estas atitudes em virtude de um sentimento de rejeição ao sistema como está constituído, “esquecendo-nos” de não se deve descumprir determinada norma por ser esta falha, ou por apresentarmos discordância em relação a seu teor e conteúdo.
Enquanto praticamos pequenos ilícitos buscando pequenas vantagens que não nos trazem alteração substancial alguma, há pessoas que só conseguem sobreviver porque vivem à margem do sistema tributário formal. Então resta a pergunta: quem é o verdadeiro sonegador? Quem deixa de recolher tributos porque eles podem ser a diferença entre a sua subsistência ou não, ou aqueles que deixam de recolher tributos porque é mais uma situação fácil de obter pequena vantagem financeira?


ROSA, Dênerson Dias. Eu sonego!. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/tributario/eu_sonego.htm>.
Acesso em: 19.AGO.111

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